Retirado do site http://emnapion.blogspot.com.br/2012/06/bola-e-o-goleirojorge-amado.html
A BOLA E O GOLEIRO(JORGE AMADO)
Vou contar a quem a queira ouvir a história da bola Fura-Redes e do
goleiro Bilô-Bilô, o Cerca-Frango, uma historinha para ninguém botar
defeito, breve e louca como a vida.
O destino das bolas de futebol é fazer gols e a bola Fura-Redes, como o
nome indica, era a maior especialista do país na quantidade e na
qualidade dos tentos assinalados. Gols olímpicos, e de efeito, de
folha-seca, de letra, de bicicleta, de placa, incomparáveis.
Por isso mesmo tornou-se conhecida e aclamada como Esfera Mágica,
Goleadora Genial, Pelota Invencível e Redonda Infernal, pelos locutores
enlouquecidos ao microfone, quando a viam atravessar o campo, de passe
em passe, de finta em finta, para marcar mais um tento sensacional. A
bola Fura-Redes era o pavor dos goleiros, a paixão dos pontas-de-lança e
dos comandantes de ataque, a bem-amada da torcida. Nascera para cruzar
o arco, bater-se alegre contra as redes, provocar o grito de guerra e
de vitória da galera.
Lustrosa, leve e atrevida, a mais redonda das pelotas, apesar de muito
jovem, logo se tornou popularíssima devido ao número de tentos já
marcados, cerca de seiscentos; muitos em cada partida. Vários para a
equipe A e vários para a equipe Z,pois Fura-Redes mantinha-se
absolutamente imparcial quando se exibia no gramado.
Marcava gols para as duas equipes, não protegia qualquer delas, era
correta e justa. Assinalaria maior número de tentos o time que mais
procurasse o ataque, buscando encurralar o adversário. Com ela, os
artilheiros não erravam os chutes, não desperdiçavam bolas nas traves.
Mas, sendo igualmente bondosa, dotava de um coração de ouro, Fura-Redes
tampouco deixava a outra esquadra em jejum: pelo menos um golzinho de
consolação ela lhe concedia antes que o juiz trilasse o apito, dando o
desafio por terminado.
Fura-Redes fora proclamada inimiga número um do zero no placar. Os
resultados das partidas que jogava davam conta da impressionante vocação
da Redondinha para o gol. Redondinha, carinhoso apelido que lhe dera o
Rei do Futebol. Escores sempre altos: cinco a quatro, sete a seis,
seis a seis. Ou bem violentas goleadas: seis a dois, oito a três, cinco
a um, quando se fazia evidente a diferença de qualidade entre os dois
clubes, o campeão, dono do gramado, e o adversário, um timinho qualquer,
de última categoria.
Atingira Fura-Redes o ponto mais alto de sua brilhantíssima carreira:
falava-se nela para ser a bola oficial da próxima Copa do Mundo. Os
principais artilheiros dos grandes clubes, os maiores pontas-de-lança do
país morriam de amores por ela, todos queriam ser seus favoritos para
alcançar o recorde mundial de gols. Mas a heroína dos gramados não
revelava preferência por nenhum deles. Partia em direção ao arco tanto
do pé do maior dos craques, Rei do Futebol, quanto da chuteira de um
perna-de-pau qualquer até então desconhecido. Para ela todos eram
iguais, servia-se deles para buscar o gol e desatar a vibração do povo
nos estádios a cada tento que marcava, todos dignos de placa.
Fura-Redes jamais se apaixonara.
Um dia, porém, como sucede com todas as criaturas, Fura-Redes se
apaixonou e logo por quem! Em lugar de se apaixonar por um artilheiro,
por um centro-avante, um ponta-de-lança, entregou seu coração a um
goleiro, ao último dos goleiros, a Bilô-Bilô Mão Podre, engolidor de
frangos.
O goleiro Bilô-Bilô iniciara sua carreira de goleiro sendo saudado em
campo com diversos apelidos, cada qual – como direi? – mais caloroso:
Cerca-Frango, Mão-Furada, Mão-Podre, Rei-do-Galinheiro e outros nomes
ainda mais feios que eu não reproduzo aqui por ser esta historinha
dedicada ao público infanto-juvenil. Pois bem: Bilô-Bilô transformou-se
no aplaudido, no popularíssimo Pega-Tudo, o Tranca-Gol, o Aranha, o
Maior de Todos.
Dizem ter sido a camisa de caramelo usada por Cerca-Frango a causa da
paixão de Fura-Redes. Quando o avistou no arco daquele time fuleiro que
ainda não ganhara nenhuma partida no campeonato, que recebera goleada
sobre goleada, Fura-Redes perdeu a cabeça, não teve olhos para ninguém.
Apenas iniciada a partida, ao ser chutada com violência para o arco,
foi aninhar-se nos braços do Rei-do-Galinheiro. Pela primeira vez na
vida, Cerca-Frango viu-se ovacionado num estádio.
Fura-Redes continuou a fazer gols sensacionais nos demais goleiros, um
gol atrás do outro. Mas quando entrava em campo a esquadra em cujo arco
Pega-Tudo se exibia, era aquela glória. O arqueiro adversário
engolindo bola sobre bola, enquanto Pega-Tudo recolhia a pelota de mil
maneiras diferentes, em defesas nunca vistas antes. Outra coisa não
desejava Fura-Redes além de aninhar-se nos braços de seu namorado.
Para não faltar com a verdade, devo dizer que Bilô-Bilô mantinha-se
igualzinho, não mudara: continuava sem saber se posicionar entre as
traves, não saía do arco no momento certo, faltava-lhe visão do gol,
enfim, prosseguia péssimo. Apenas defendia tudo, absolutamente tudo.
Cerca-Frango cercava a bola por um lado, ela estava no outro, a galera
gritava GO-o-o-ol! E, de repente, na hora agá, o que se via? Via-se a
bola encaixada nas mãos de Pega-Tudo, apertada contra o coração do
goleiro, nos braços de Bilô-Bilô, sossegadinha, feliz da vida. Em lugar
de um novo gol de Fura-Redes, a torcida saudava mais uma portentosa
defesa de Pega-Tudo.
Durante um tempo mais ou menos longo, Fura-Redes e Tranca-Redes,
ex-Cerca-Frango, dominaram os estádios brasileiros, empolgando multidões
nas festas de tentos maravilhosos e de defesas deslumbrantes. Ocupavam
as manchetes dos jornais, as telas das televisões e dos cinemas,
obrigavam os locutores a criarem expressões novas, ainda mais
grandiloqüentes, aumentativos colossais para descrever os feitos da Bola
e do Goleiro.
Depois de varar as redes, aumentando o placar da surra humilhante
aplicada na equipe adversária, a Redondinha vinha redondinha, acolher-se
nos braços de Bilô-Bilô, aconchegar-se em seu peito. Por mais de uma
vez aconteceu Tranca-Redes beijar Fura- Redes e então, no estádio, o
numeroso público delirava.
Parecia um milagre e assim era: milagre de amor não tem explicação, não necessita.
Um dia os jornais, as rádios, as cadeias de televisão anunciaram para o
Brasil e para o mundo inteiro que o Rei do Futebol havia faturado o gol
novecentos e noventa e nove e se preparava para varar o gol número
mil, notícia empolgante e alvissareira. Jamais outro artilheiro
realizara tal façanha, metera mil gols nas redes adversárias.
Movimentaram-se os goleiros do Brasil e de todos os países, todos
queriam a honra e a glória de engolir o gol número mil do Rei. Vieram
telegramas propondo famosos quípers estrangeiros mas os brasileiros
protestaram com razão: tinha de ser um goleiro nacional.
Caberia a Bilô-Bilô aquele feito supremo: cercar o frango no milésimo
gol do craque sem igual, pois cumprindo calendário do campeonato
entraram em campo ou melhor adentraram o gramado – em embate tão
importante não se entra em campo, adentra-se o gramado – a equipe do Rei
e aquela cujo arco era guardado por Bilô-Bilô.
Evidentemente a bola escolhida para o desafio não podia ser outra senão
a famosa Fura-Redes, a quem o rei, como se sabe, galanteava dizendo-lhe
“Redondinha, minha querida, minha formosa namorada”.
Ainda hoje muita gente não acredita no que aconteceu em campo naquela
tarde de sol com milhares de bandeiras desfraldadas no estádio onde mais
de duzentas mil pessoas se comprimiam, gritando e aplaudindo. O time
do Rei do Futebol, que devia ganhar de goleada, apanhou uma surra de
criar bicho. Fura-Redes pintou e bordou e quando faltavam alguns
segundos para a partida terminar, o escore subia a cinco a zero contra a
equipe do Rei.
Nos últimos segundos, porém, quando o público, decepcionado por não ter
assistido ao gol número mil, começava a deixar o estádio,o juiz marcou
um pênalti contra o time de Bilô-Bilô, pênalti que ninguém tinha
cometido. Roubo claro e evidente, foi no entanto aplaudidíssimo pois ia
possibilitar que aquele imenso público visse e comemorasse o milésimo
gol do Rei: mais do que ninguém, vibrou o nosso conhecido Cerca-Frango
pronto para cercar o frango real e o engolir inteiro.
Colocou-se a bola Fura-Redes na marca do pênalti, um silêncio enorme
cobriu o estádio. O Rei do Futebol tomou distância para dar ainda mais
força ao chute potentíssimo, indefensável e fazer um límpido gol de
placa. Postou-se no arco Bilô-Bilô envergando a vistosa camisa cor de
caramelo, nos lábios um riso de contentamento, pronto para não fazer a
defesa, para engolir o frango cru, com penas e tudo. Aliás nem se
postou no centro do arco como era sua obrigação, ficou encostado na
trave direita, do lado de fora, deixando o espaço livre para que
Fura-Redes nele penetrasse. Ninguém protestou, todos entenderam o gesto
do arqueiro: iria se imortalizar ao receber aquele gol.
Correu o Rei, chutou com a máxima violência a meia altura diante do
arco vazio. Duzentas e quatro mil trezentas e dezoito pessoas, sem
contar os jornalistas, os cartolas e os penetras, viram Fura-Redes ser
atirada com potente e certeiro chute do Rei do Futebol contra o
desguarnecido arco de Bilô-Bilô.
Puseram-se todos de pé no estádio, preparados para aplaudir, até o fim
do dia e pelo resto da semana, o gol número mil do Rei do Futebol.
Viram então Fura-Redes dar meia-volta no ar, desviar-se antes de cruzar
o arco, dirigindo-se, dengosa, para onde estava Bilô-Bilô vestido com a
camisa cor de caramelo: queria aninhar-se em seus braços.
Mudou Cerca-Frango de posição, fugindo rápido para o outro lado,
Fura-Redes fez o mesmo, a buscá-lo. Assim ficaram os dois durante
alguns minutos, um tempo enorme, correndo em frente às traves, de uma a
outra, até que, desesperado, Bilô-Bilô disparou campo afora deixando o
arco à disposição da bola. Mas Fura-Redes partiu atrás de seu goleiro e
o perseguiu até que o alcançou diante do arco adversário e em seu peito
se aninhou redondinha e amorosa.
Assim terminou a carreira futebolística da bola Fura-Redes e a do
goleiro Cerca-Frango que foi o pior e o melhor de todos os goleiros. O
que fizeram depois? Ora, o que fizeram! Se casaram e viveram felizes
para sempre.
Bahia,janeiro de 1984
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